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sexta-feira, 27 de maio de 2016

CARTA PARA AURORA


CARTA PARA AURORA
“I've looked at life from both sides now
From win and lose and still somehow
It's life's illusions I recall
I really don't know life at all
I've looked at life from both sides now
From up and down, and still somehow
It's life's illusions I recall
I really don't know life at all”[1]

Querida Aurora,
            Ainda não nos conhecemos. Você ainda está gestando em meus sonhos. Mas os sonhos são reais e eu te vejo correndo pela casa em seu vestido amarelo, já surrado que você insiste em usar. Mesmo com seus quatro anos você puxou a mim e sabe como ser teimosa pra ter o que quer, e hoje você quer seu vestido amarelo de novo.
            Você se senta, relutantemente, entre as minhas pernas enquanto eu penteio seus cabelos e escuto as reclamações de que você não quer pentear os cabelos, de que dói, de que quer correr, de que quer ver TV, de que quer brincar com o cachorro lá fora, de que quer ser criança.
           Aurora, senta. Espera que eu penteie seus cabelos.
Aurora, espero que seu mundo seja melhor do que o que eu recebi ao acordar nesta manhã de quinta-feira. É feriado, está frio, estou feliz em família, mas o mundo é muito frio lá fora. Cá estou eu, entre amigas e familiares rindo, relembrando fatos, revivendo memórias, mas lá fora desse quintal está muito frio, Aurora.
Eu, quando tinha sua idade, não queria ter o cabelo que você tem hoje e que hoje carrego com orgulho em minha cabeça. Eu, com minha idade atual, não quero ter o corpo que tenho e tenho em mim uma carência que me faz acreditar que tenho culpa por não pertencer ou corresponder ao que demandam de mim. Quem demanda de mim Aurora? O mundo lá fora, como eu te disse ele é muito frio. Hoje, eu já me protegi de muitas dessas demandas, minha filha. Já amo meu cabelo e sei como me defender de algumas ofensas e olhares questionadores sobre minha postura, minha roupa, minha melanina ou que faço aqui. Mas não a todas. Algumas demandas ainda me matam um pouco e me fazem duvidar de amor que deveria ter cultivado por mim.
Aurora, quero que você saiba o que é amar a si. Quero que você não veja a limpeza da casa como uma obrigação sua. Que você se sinta como pertencente a qualquer lugar. Que possa entrar e sair de qualquer loja, experimentar qualquer roupa e, mesmo se não levar nada, não se sentir constrangida, questionada. Quero que não te confundam sempre com vendedora, que não te apontem o elevador de serviço, que o porteiro não te olhe estranho toda a semana que voltar para a terapia naquele prédio chique lá na zona sul. Quero que tenham mais iguais a você na TV, nos poderes, nos produtos, nas histórias, nos brinquedos. Quero que você não tenha que repensar a roupa que quer usar por medo do que alguém vai pensar, do que vão dizer, da imagem que vai passar. Quero, minha Aurora, que o mundo te veja como te vejo agora em meus sonhos, uma menina sol, em seu vestido amarelo, cheia de risos, sonhos, potenciais, valores e amores que velam por você.
Não quero te embutir os conceitos errados que eu ainda carrego e deixo escapar às vezes pelo automatismo da repetição do que me foi dito, redito, repetido, internalizado, vivido, sentido, ressentido.
 Você há de ter um mundo menos frio, Aurora, e eu tentarei te dar todos os casacos e couraças que puder.  Já estou treinando para isso, minha filha. A cada menina na rua que vejo com seus cabelos crespos soltos e envoltos em laços e fitas, faço questão de elogiar, para que elas saibam que são lindas e merecem estar em qualquer lugar. A cada olhar que me questiona merecimento ou pertencimento eu respondo com um olhar igualmente firme, desafiando que tragam à tona o seu racismo ou machismo que está mascarado nas piadas, nas suposições, nos comentários maldosos.
Ainda não sou forte como queria, Aurora, mas a cada dia quero ser mais forte por você. Para você não se ver como culpada, para você não se sentir obrigada a nada que não queria e nem envergonhada por às vezes querer.  Ainda não sou forte como queria, mas sou mais forte que sua avó, que por sua vez é mais forte que sua bisavó e por aí vamos até àquela matriarca que veio amarrada, violada e vendida em uma navio negreiro a um tempo atrás (nem faz tanto tempo assim, minha filha, é triste eu sei.). Por isso essa demora em se fortalecer, por isso essa dificuldade em pertencer.
Mas não tema nada Aurora, já estou terminando de desembaraçar esse cabelo tão lindo e você poderá correr lá fora. Mas leva um casaco! Pode ser o roxo mesmo que tá jogado na sua cama, pois ainda é frio lá fora. Mas deixe o frio lá fora. Não deixe ele entrar, morar em você, passar a ser você. Você não é fria, minha filha Aurora. Você é mulher, é negra, é linda. Sem “mas”, sem “porquês”. Só “é” e isso basta. Não questione Aurora e não deixe que questionem você. Corre e vai brincar lá fora, vai colorir o mundo lá fora, vai levar calor lá pra fora.



[1] “Olho a vida de ambos os lados agora/ Do ganhar e perder, e ainda de alguma maneira/ É das ilusões da vida que eu me recordo/ Eu realmente não conheço nada da vida/ Olho a vida de ambos os lados agora/ De cima e de baixo, e ainda de alguma forma/ É das ilusões da vida que eu me recordo/ Eu realmente não conheço nada da vida” Tradução livre; Both Sides Now – Joni Mitchell

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Casa Bagunçada


“Eu moro em mim mesmo. Não faz mal que o quarto seja pequeno. É bom, assim tenho menos lugares para perder as minhas coisas.”
Mário Quintana

         Minha casa está uma bagunça. Os livros e meias se abraçam no chão da sala em uma estranha dança silenciosa, parada. Meu tênis deitado de lado no colo de talheres antigos lhes fala das trilhas que percorreu naquele dia, das calorias que acredita ter queimado, do fôlego que quase não tive naquela curva da Pampulha, de como o sol ardia em meus olhos suados, salgados, cansados... Os talheres retrucam contando dos pensamentos que me visitam, dos desejos que tento engolir junto aos goles d’água que afogam minha ansiedade. Falam da imaginação doce, salgada, gordurosa que insiste em buscar uma brecha em meu constante vigia, a consciência.
         Em meu sofá, preguiçosamente, se jogam meus amores, aqueles que cultivei, aqueles que sufoquei. Amores fraternos, amores ardentes... No canto os Desejos de se lançar, de se permitir debatem alegremente e alta voz. E no canto da sala meu Censor sisudo e bravo olha e a tudo reprime. “Isso não pode! Isso não é certo!” E meus Desejos gargalham, alto, jogando a cabeça pra trás e inundando o ambiente com seu humor intempestivo.
Meus amores são mais discretos. Eles têm em si muitos medos, muitas dúvidas... Não gostam de se arriscar e de dizer o que pensam. Não são livres e escandalosos como os Desejos, mas também não são carrancudos como o Censor. Mas não são tranquilos e serenos como eu desejaria. Eles me visitam com sua ansiedade que por vezes me impede de simplesmente não pensar, não preocupar, não temer a solidão. Eles me encaram sempre carentes, com seu medo constante de não serem compreendidos, de são receberem em troca a afetividade que pulsa e queima neles.
Passo pela sala pulando as camisetas e calças que já não me servem, mas que me lembram das dimensões que já tive e sempre me convidam a voltar a ser como era... Que saudade da minha ilusão de autoaceitação. Ela sempre me visitava e me convencia de que eu estava bem comigo mesma... Mas suas vistas eram sempre tão breves e ela sempre deixava pra trás uma tristeza profunda e aquela decepção que comia tudo em minha geladeira, sem nem saborear as doçuras, a acidez, o tempero do que ali estava.
Chego a meu quarto pequeno, apertado, e vejo que ela está lá... “Hoje você não veio sozinha, né?”. Ela apenas sorri, reclama do amontoado de bagunças que mantenho ali e me apresenta seu companheiro “Ele se chama Desânimo, você tanto pediu que eu trouxe ele aqui” Eu agradeço a ela pela gentileza e pela lembrança. “Não precisava Acomodação. Você já tem feito um excelente trabalho”.
Ela percebe como estou triste... Ela vê as lágrimas em meus olhos e me abraça. Seus braços são macios e quentes e me envolvem sem me machucar, por ora. Ali me sinto paralisada, estática, não há razão pra sair... “Você sabe que as coisas não vão mudar mais... já está bom assim... já caminhou demais... deixa como está....” O Desânimo está a seu lado e me acaricia os cabelos... Estou tão carente de afeto... Tão cansada de incompreensão(da minha e dos outros) e, principalmente, da injustiça da balança que ignora minhas corridas, meus pulos, mas contabiliza religiosamente cada doce, cada biscoito, cada carboidrato que a ansiedade insiste em convidar para morar comigo... Isso me oprime e me cansa tanto que me deixo ficar ali acolhida por eles... “É... nada vai mudar...”eu deixo escapar em um suspiro lacrimoso...
Batidas surgem na porta e, num susto, me coloco de pé. Não esperava ninguém ali. Meu Deus, não podem ver essa bagunça! Pelo olho mágico observo o corredor e ali está ela.
 Como é pequena...como é magrinha... mas como ela sorri! É a Esperança...
Ela insiste em suas batidas infantis. Todos me olham em minha casa pra saber se abrirei a porta ou não.
Não sei... já a confundi tantas vezes com sua prima Ilusão...Aquela lá já me fez sofrer tantas vezes.
É como se eu sentisse que não mereço conquistar isso. Como se tivesse que me conformar em deixar tudo como está, em reunir desculpas para justificar ao meu desapontamento o distanciamento cotidiano e crescente de minhas metas iniciais... “Vamos! Abre a porta! A gente precisa arrumar essa casa!” sua voz aguda e fraca me intimida...
“Não sei... não me vejo merecendo isso... acho que nada vai dar certo mesmo...”
      Ela é criança e, como todas elas, impaciente. Com todas as suas forças tenta empurrar a porta. Meus visitantes me olham aflitos. Minha mão está parada na fechadura...“e se eu abrisse novamente dessa vez....?”

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Casa avarandada

Casa Avarandada
“Às vezes eu tenho uma leve impressão
Às vezes é uma bruta certeza
de que a nossa vida na Terra
não é bem uma viagem de férias (...)
Tudo vem, passa por nós e se vai
Sonhos e planos, fracassos, vitórias
o bem e o mal, pesadelos e sonhos bons
nada mais restará na corrente dos anos
que ainda tentamos deter a todo custo nas mãos
Se tudo e todos que amamos se vão
Meu amor segura firme a minha mão
A mente e o corpo tão breves são ilusões
Só restará o coração, a vela de um barquinho
no oceano infinito do Tempo a vagar...
E na branca manhã dos meus 33
Eu tive uma bruta certeza
De que a vida humana na Terra
Não é bem uma viagem de férias”
Manhã dos 33 – Marcos Vianna

      Reza a lenda que há de vir uma menina Maria. Menina comprida, magrinha, canelas finas, cabelo preso sob um lenço de pano, com uma trouxa de roupa na cabeça. Menina Maria que vai trabalhar e estudar desde cedo. Menina que sonhará desde sempre. Reza a lenda que entre os pedaços de sabão, lenços e lençóis que ela esfrega, sonhará Maria em meio às canções que conhece. Sonhará com uma “casa antiga um pé de flor na porta e os meninos soltos pelos mundos seus...” [1]. Sonhará Maria, trabalhará Maria, crescerá Maria, será minha mãe.
      Reza a lenda que há de vir um garoto com apelido de “Vado”. Garoto inventivo, arteiro, aprontando muito, trabalhando muito. Garoto que um dia subirá em um pé de árvore à beira de uma escola e verá, entre as crianças, uma professora Maria. Garoto que há de ser homem, ser grande, será meu pai.
     Reza a lenda que a casa dos sonhos de Maria vai se tornar concreto pelos braços e projetos de Vado, com um pé de dama da noite à porta convidando a todos a entrar por seu terreiro, conhecer seus segredos, seus barulhos, seus meninos soltos, serão meus irmãos.
       Reza a lenda que há de vir primeiro uma menina. Menina miúda, com mente em terras distantes. Que pintará planos, desenhará sonhos, tecerá projetos, esculpirá destinos e modelará a história que sempre quis pra si. Menina que será fruto de Maria, mas renovada, Mariana. Menina que será mais arte que corpo, mais sentimento que razão, mais porto que irmã.
        Reza a lenda que há de vir um menino. Menino sisudo, fechado, chorão. Que se fechará agressivo ao mundo pra que não vejam a doçura que ele traz em si. Menino que crescerá em maturidade e gentileza e, pela música, vai se aproximar do mundo e o convidar a entrar em sua sala pelos acordes de seu violão. Menino que terá o nome de evangelho, Lucas, poesia, história, proposta de renovação.
        Reza a lenda que há de vir outra menina àquela casa avarandada. Dizem que ela chegará leve como pluma que dança no vento, convidando a todos com sua voz fina para com ela dançar. Menina que, por um tempo, deixará de ser leve e dançarina, que se fechará, escondendo-se por trás de um destino que não lhe pertence. Mas ela há de despertar novamente e lançar-se no vento, mais forte que antes, mais bela, mais leve, mais aberta, mais flor do que pluma, mais dança do que Júlia, leve, solta a plainar.
      Reza a lenda que há de vir do luar, por último, um menino. Ele chegará bagunçando a casa, mudando tudo de lugar, incomodando os acomodados, provocando, atiçando, sorrindo. Mais sorriso que menino, mais humor que corpo. Mas que também crescerá como homem, correndo, lutando, pedalando seu destino de ser grande sem, por isso, deixar de ser riso. Vindo do Luar, o menino Raul ainda habitará a lua, estagiando na casa. Não deixando ninguém dormir em sossego sem um sorriso, um questionamento, um abraço ou uma piada (mesmo que sem graça).
         Mas o que a lenda não diz é se essa menina Maria, com sua trouxa de roupa na cabeça, e se o menino Vado, com suas armadilhas para gatos, têm ciência do destino que tecerão. Dos primos que se tornarão irmãos, dos tios com abraços doces, salgados, acolhedores; dos avós com panelas, sorrisos e sofás domingueiros cheios; dos amigos que abrirão geladeiras e se deitarão no sofá como novos filhos; dos amores que agregarão novos roteiros, novos destinos, novos sonhos, novas canções...
Menina Maria que sonha com a casa avarandada e esfrega as roupas com o pouco sabão. Menino Vado que chega cansado do trabalho à espera do prato que a mãe preparou e está sobre a mesa. Sonhem, se encontrem e prossigam. Construam meu destino, minha história, a casa com seu quintal que me abraça. Preparem café da manhã surpresa no meu aniversário, escrevam teatros no natal e me obriguem a colocar o par sapato aos pés da árvore que brilha iluminando a sala. Escondam meu ovo de páscoa embaixo do pé de pitanga no quintal, me levem à praia, me levem à roça. Cantem e contem histórias quando eu quiser dormir. Ensinem-me a ler, me incentivem a crescer. Disciplinem-me e me digam que não. Penteiem meu cabelo, me digam que sou negra e que isso é muito bom. Me acordem cedo para a aula e me busquem de madrugada em minhas festas juvenis. Mostrem-me esse mundo vasto pelo olhar do amor que trazem em você.
Pergunte e diga o que não deve, menina Maria, e seja espontânea, louca, única. Hoje, mais humor, amor, companhia e orgulho do que mãe.
Leia e se instrua, menino Vado, e seja pilar, sabedoria, seriedade. Hoje mais tempero, cuidado, afeto e respeito do que pai.
Prossigam, pois seus sonhos são a minha história, suas escolhas são o meu princípio, para que hoje possa a minha gratidão ser recompensa. E possa eu sonhar as minhas canções, a minha casa avarandada, o meu quintal, a minha nova história, “recantando” o destino que gerarão para mim.



[1] Trecho da música As moças – Boca livre

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Viver não é preciso, escrever é preciso

Sobre o que seria a vida muitos dizem, cantam, recitam, descrevem, aconselham, prescrevem, indicam, medicam, meditam, praticam...

Eu apenas sinto... Sinto muito.

Sinto a vida escorrer pelos meus dedos, se perder em memórias, fazer-se de tropeços, acertos, ansiedades, decepções que se amontoam em meu peito, mais do que em minha mente.

Minha vida, não a vivo. Mas a sinto com uma clareza que a razão não consegue captar.
Viver não é preciso, não é mensurável, racional, matemático, estático.

Quanto vale aquele primeiro olhar que ele me deu em meio a tanta gente naquele dia.
A que horas eu constatei, pela nossa gargalhada juntas, que seríamos amigas pra toda a vida (e pelas próximas que virão)?
Quanto pesava aquela ansiedade de procurar meu nome entre a lista dos aprovados?
E meus esforços por ser melhor, se eu te vender, você tem troco pra vinte?
Minhas pequenas batalhas, vitórias e derrotas, você traz nessa sacola mesmo ou está pesado?

Não sei...   não sei...   não sei!

Apenas sinto.

Falar do que sinto me sufoca por vezes. A língua não acompanha a dança louca dos meus pensamentos e sentimentos nesse salão que é a vida.

Viver não é, pois, preciso.

Mas a escrita me acalma, me permite pensar, rever, revisar e, assim, me compreender e, de certa forma (mesmo que meio louca, confusa, torta) quem sabe você possa também se reconhecer.

Escrever é preciso.


Pra mim, é exercício. De dever de casa prescrito em um divã, passou a ser remédio, controlado, tarja preta!
Mas pra curar-me do que?
Curar-me de mim. Dessa insanidade (que todos temos) que me faz querer conter todo esse sentir que habita em mim.

Repito, eu sinto... Sinto muito!

E o mundo pede por certezas, definições. Mas o meu viver não é preciso. Portanto, o escrever terá de ser.

Aqui, então, entrego minhas lembranças, que se amontoam em meu peito, quando deveriam estar organizadas em minha racionalidade. Mas as dimensões das gavetas da mente não as comportam e, apesar do cenho cerrado e calado aparente, meu interior é colorido, confuso, bagunçado, impreciso, apenar sentido.... e é preciso ter sentido pra viver!
Viver não é preciso. Escrever terá de o ser.