CARTA PARA AURORA
“I've looked at life from both sides now
From win and lose and still somehow
It's life's illusions I recall
I really don't know life at all
I've looked at life from both sides now
From up and down, and still somehow
It's life's illusions I recall
I really don't know life at all”[1]
Querida Aurora,
Ainda
não nos conhecemos. Você ainda está gestando em meus sonhos. Mas os sonhos são
reais e eu te vejo correndo pela casa em seu vestido amarelo, já surrado que você
insiste em usar. Mesmo com seus quatro anos você puxou a mim e sabe como ser
teimosa pra ter o que quer, e hoje você quer seu vestido amarelo de novo.
Você
se senta, relutantemente, entre as minhas pernas enquanto eu penteio seus
cabelos e escuto as reclamações de que você não quer pentear os cabelos, de que
dói, de que quer correr, de que quer ver TV, de que quer brincar com o cachorro
lá fora, de que quer ser criança.
Aurora, senta. Espera que eu penteie seus
cabelos.
Aurora, espero que
seu mundo seja melhor do que o que eu recebi ao acordar nesta manhã de
quinta-feira. É feriado, está frio, estou feliz em família, mas o mundo é
muito frio lá fora. Cá estou eu, entre amigas e familiares rindo, relembrando
fatos, revivendo memórias, mas lá fora desse quintal está muito frio, Aurora.
Eu, quando tinha sua
idade, não queria ter o cabelo que você tem hoje e que hoje carrego com orgulho
em minha cabeça. Eu, com minha idade atual, não quero ter o corpo que tenho e
tenho em mim uma carência que me faz acreditar que tenho culpa por não
pertencer ou corresponder ao que demandam de mim. Quem demanda de mim Aurora? O
mundo lá fora, como eu te disse ele é muito frio. Hoje, eu já me protegi de
muitas dessas demandas, minha filha. Já amo meu cabelo e sei como me defender
de algumas ofensas e olhares questionadores sobre minha postura, minha roupa,
minha melanina ou que faço aqui. Mas não a todas. Algumas demandas ainda me
matam um pouco e me fazem duvidar de amor que deveria ter cultivado por mim.
Aurora, quero que
você saiba o que é amar a si. Quero que você não veja a limpeza da casa como
uma obrigação sua. Que você se sinta como pertencente a qualquer lugar. Que
possa entrar e sair de qualquer loja, experimentar qualquer roupa e, mesmo se
não levar nada, não se sentir constrangida, questionada. Quero que não te
confundam sempre com vendedora, que não te apontem o elevador de serviço, que o
porteiro não te olhe estranho toda a semana que voltar para a terapia naquele
prédio chique lá na zona sul. Quero que tenham mais iguais a você na TV, nos poderes,
nos produtos, nas histórias, nos brinquedos. Quero que você não tenha que repensar
a roupa que quer usar por medo do que alguém vai pensar, do que vão dizer, da imagem
que vai passar. Quero, minha Aurora, que o mundo te veja como te vejo agora em
meus sonhos, uma menina sol, em seu vestido amarelo, cheia de risos, sonhos,
potenciais, valores e amores que velam por você.
Não quero te embutir
os conceitos errados que eu ainda carrego e deixo escapar às vezes pelo
automatismo da repetição do que me foi dito, redito, repetido, internalizado,
vivido, sentido, ressentido.
Você há de ter um mundo menos frio, Aurora, e
eu tentarei te dar todos os casacos e couraças que puder. Já estou treinando para isso, minha filha. A cada
menina na rua que vejo com seus cabelos crespos soltos e envoltos em laços e
fitas, faço questão de elogiar, para que elas saibam que são lindas e merecem
estar em qualquer lugar. A cada olhar que me questiona merecimento ou
pertencimento eu respondo com um olhar igualmente firme, desafiando que tragam à tona o seu racismo ou machismo que está mascarado nas piadas, nas suposições,
nos comentários maldosos.
Ainda não sou forte
como queria, Aurora, mas a cada dia quero ser mais forte por você. Para você não
se ver como culpada, para você não se sentir obrigada a nada que não queria e
nem envergonhada por às vezes querer. Ainda
não sou forte como queria, mas sou mais forte que sua avó, que por sua vez é mais
forte que sua bisavó e por aí vamos até àquela matriarca que veio amarrada, violada
e vendida em uma navio negreiro a um tempo atrás (nem faz tanto tempo assim, minha
filha, é triste eu sei.). Por isso essa demora em se fortalecer, por isso essa dificuldade
em pertencer.
Mas não tema nada Aurora,
já estou terminando de desembaraçar esse cabelo tão lindo e você poderá correr lá
fora. Mas leva um casaco! Pode ser o roxo mesmo que tá jogado na sua cama, pois
ainda é frio lá fora. Mas deixe o frio lá fora. Não deixe ele entrar, morar em você, passar a ser você. Você
não é fria, minha filha Aurora. Você é mulher, é negra, é linda. Sem “mas”, sem
“porquês”. Só “é” e isso basta. Não questione Aurora e não deixe que questionem
você. Corre e vai brincar lá fora, vai colorir o mundo lá fora, vai levar calor
lá pra fora.
[1]
“Olho a vida de ambos os lados agora/ Do ganhar e perder, e ainda de alguma
maneira/ É das ilusões da vida que eu me recordo/ Eu realmente não conheço nada
da vida/ Olho a vida de ambos os lados agora/ De cima e de baixo, e ainda de
alguma forma/ É das ilusões da vida que eu me recordo/ Eu realmente não conheço
nada da vida” Tradução livre; Both Sides Now – Joni Mitchell