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sexta-feira, 14 de outubro de 2016

PORÃO



Todo o chão se abre
No escuro, se acostuma
Às vezes a coragem é como quando a nova lua
Somos a discórdia
E o perdão
E nos esquecemos da cor que tinha o céu, assim
Como a saudade
Ou uma frase perdida
Durma, Medo Meu
Hmmm, não
Às vezes um "não sei"
Janela, madrugada, luz tardia
E o medo nos acorda
Para e bate o coração
Em pura disritmia
O medo amedronta o medo
Vela, madrugada, dia, assim
Como a saudade
Ou uma frase perdida
Durma, Medo Meu
Durma, Medo Meu – O teatro mágico

Está frio... Está frio e silencioso...
O mundo é um grande porão, poeirento, abandonado, escuro, isolado, habitado por fantasmas, pesadelos, sombras de monstros que escalam as paredes e entram pelas janelas.
Eu, criança perdida, olho a tudo com olhar estatelado de quem enxerga, mas não compreende a realidade que a cerca. De caixas vazias surgem monstros, os barulhos são gritos e as tralhas envoltas em sombras alimentam os temores da mente, se projetando em forma de seres que a infância teme e só me convidam a fugir.
O medo pede fuga, distância, socorro. Se teme o que não se conhece, o que não se compreende, o que não se explica e nem se entende, o que não cabe em minha mente limitada e fechada.
Hoje tenho medos. Medos duas naturezas. Medo por não poder saber e medo por saber demais.
Tenho medo desse mundo que não permite a pergunta, que não admite a dúvida, o questionamento, a informação simples, sem crítica, sem opinião, sem achismos ou desachismos, dedos em riste, volumes de voz exaltados, placas e protestos.
Tenho medo por não poder mais me informar antes de opinar, por não encontrar informação. Tenho medo, pois não posso mais procurar saber sem ser colocada em cima de um muro que construíram nessa democracia agressiva do Fla X Flu, que distancia a família, esvazia as mesas de boteco, que se ergue entre os amigos e afasta os abraços e os sorrisos. Tenho medo, pois não encontro mais o “saber” que vem apenas temperado de pimenta, inflamado, cheirando a valores subliminares e entendimentos particulares. Tenho medo dessa ditadura do protesto imediato e da perda do meu direito de querer apenas saber antes de vomitar o que penso. Não pode! Não tá certo!  Pode sim! Tá tudo como deveria estar! Ela não presta, nada que presta vem dela! Ele não presta, nada que presta vem dele!
Tenho medo por ser uma “Poliana” nesse porão frio que o mundo se fez, por ainda querer crer que nada pode ser de todo ruim, ou de todo bom, só por estar sob determinada bandeira, sob determinado nome, sob determinada cor.
Tenho medo de me perder nisso e despertar a ira que acumulo por problemas meus lançando-a na fogueira dos problemas coletivos e inflamando um incêndio que eu não posso controlar. Isso por não poder simplesmente saber... por não ter como saber... por não ter meios de me informar... por ter que me questionar em silêncio e não encontrar quem queira ouvir das dúvidas que tenho sem questionar que camisa uso, que time defendo, em quem votei ou não.
A liberdade defendida é bandeira obrigatória e não se pode questionar... Luta! Protesta! Não lê! Não discute! Assume! Tá contra? Tá a favor? Desce daí menina!
E de cima do meu muro enxergo a tudo chocada e cansada, trazendo em mim ainda o medo de saber demais.
Vejo o mundo à minha volta com os olhos deseducados de quem se julga certa, moral, adequada. Vejo e critico. Classifico, seleciono, opino, etiqueto. Antes de ver, já tenho uma opinião que enquadra o outro e o limita à minha perspectiva de viver, de ver, de ser.
Meu olhar a tudo comporta e conforma nas prateleiras de meus conceitos pré-constituídos do que pode ou não pode ser. Sei demais da vida, sei demais do viver, sei o que cada um deveria ou não estar fazendo e isso me sufoca de uma insatisfação, que na verdade é por talvez não me ver fazendo tudo aquilo que poderia ou deveria fazer.
Estou sozinha nesse porão repleta de conceitos que carrego e que nas sombras da noite se fizeram monstros e me impedem de prosseguir ou de enxergar mais além. Acumulo tralhas em traumas que conformam a realidade à maneira que me ensinaram a enxergar.
Talvez o desejo de querer saber mais antes de opinar venha dessa solidão que as caixas em meu sótão trouxeram: entulhadas me afastam da verdade do outro que se mostra a mim como é e não como eu gostaria de vê-lo. Conceitos que vejo gritando nas falas alheias gritam em minha mente no meu Fla x Flu, no meu muro, na minha ditadura solitária de um viver repleto de preconceitos que, a bem da verdade, nem sei mesmo se são meus, se quis segui-los ou como é que vieram parar aqui.
Medo que me chama à fuga todo dia, espera um minuto. Dorme um pouco. Aquieta. Deixa eu ver o que esse porão esconde. Deixa eu ver o que tem aqui e o eu que posso aproveitar. Nem tudo isso é tralha. Nem tudo é só poeira. Nem tudo está certo, mas nem tudo está errado também. Mas eu tenho o direito de saber e de poder escolher quais dessas caixas e monstros eu preciso e quero defender e carregar.