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quarta-feira, 21 de setembro de 2016

COLO

Colo

Mãe, quando é que a gente vira adulto?
Quem me diz que eu já sou adulta?
Então, me fala, quando é eu vou me sentir assim?

Eu olho pra minha data de nascimento e, segundo ela, eu já deveria ser adulta.
Eu olho pro meu cachorro quando chego do trabalho e ele me cumprimenta em busca de ração e seu olhar me diz que eu deveria ser adulta.
Eu olho a pilha de contas na mesa de minha sala, gritando meu nome, roubando meu saldo disponível para saque, pesando em meus bolsos e elas me cobram como se cobraria a um adulto.
Eu deito em meu sofá e ligo o telejornal e engulo notícias mais tristes que meus problemas e o cheiro delas e a minha indiferença me atestam como se eu fosse adulta.

Mas eu sou?

Eu não me vejo assim... apesar das dores nas costas que me chegam quando fico em pé por muito tempo em festas que antes atravessava sem dor, com salto alto e sem ter a menor noção das horas.

Eu não me sinto assim... apesar do garoto ter me chamado de senhora e me olhado com olhar vago quando mencionei a propaganda de um certo chocolate que ia à praia – ainda não consigo acreditar que ele não conhece o Milkbar! Não, não me venha com Lollo! Lollo não vai à praia como dizia o jingle do bom e velho Milkbar.... milkbar...milkbar...

Eu não me percebo assim... apesar de já estar fazendo check-up anualmente e ver o valor do plano de saúde subir e o do seguro de automóvel cair...

Deus... eu tenho seguro de automóvel!
Deus... a gerente do banco acha que eu sou responsável!
Deus... as atendentes de telemarketing me procuram como se eu respondesse por mim!

Mãe, me fala! Quando que passa essa vontade de deitar no seu colo e dormir até o outro dia?
Quando que vai passar essa insegurança toda vez que eu preciso decidir minhas rotas e ainda me pego pensando como seria bom ter a assinatura com o aval de um responsável?
Quando eu vou me sentir como senhora do meu destino com a mesma certeza que eu sentia partir de você quando te via saindo pro trabalho e chegando infinitas horas depois?
Me fala, mãe?

Por hoje, eu só queria deitar no sofá da sua casa e escutar o barulho tranquilo do feijão cozinhando e sua sinfonia de panelas e talheres, enquanto você cantarolava alguma MPB na cozinha.

Por hoje, eu só queria que minha única preocupação fosse o boletim, o namorico no pátio durante o recreio, o caderno de respostas da amiga, o desenho da TV que eu perdi, a festa do final de semana.

Por hoje, eu só queria te ver chegar pela sala ralhando comigo pela irresponsabilidade, pelo para-casa que eu não fiz, pela bagunça do meu quarto, pela minha mochila jogada que não tem perna e por isso não vai sair da sala sozinha.

Me coloca no seu colo mãe, que eu não cresci.
Na verdade, nem sei se algum dia eu vou mesmo crescer.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

TUDO BEM, TAMBÉM!

“Quando ascendes a teu Céu, eu desço ao meu Inferno - mesmo então chamas-me através do abismo intransponível, "Meu Amigo, Meu Companheiro, Meu Camarada", e eu te respondo: "Meu Amigo, Meu Companheiro, Meu Camarada" - porque não gostaria que visses meu Inferno. A chama queimaria teus olhos, e a fumaça encheria tuas narinas. E amo demais meu Inferno para querer que o visites. Prefiro ficar sozinho no Inferno.
Amas a Verdade, e a Beleza, e a Retidão. E eu, por tua causa, digo que é bom e decente amar essas coisas. Mas, no meu coração rio-me de teu amor. Mas não gostaria que visses meu riso. Gostaria de rir sozinho.
Meu Amigo, tu és bom e cauteloso e sábio. Tu és perfeito - e eu também, falo contigo sábia e cautelosamente. E, entretanto, sou louco. Porém
mascaro minha loucura. Prefiro ser louco sozinho: Meu Amigo, tu não és meu Amigo, mas como te farei compreender?
Meu caminho não é o teu caminho.
Contudo juntos marchamos, de mãos dadas.”
Khalil Gibran
- Ei! Como você tá?
- Tô bem e com você?
- ...

Eu? Eu, não.
Eu tô cansada.
Perdida.
Confusa.
Sozinha.
Não tô bem.
Não sei quem estaria.
Não entendo como você também pode estar.
Eu vejo seu rosto com esse sorriso polido, seu abraço frouxo que alisa minhas costas, seu perfume adequado que me abraça as narinas, seu peso correto que me afronta as dimensões que eu não aceito...
Não tô nada bem e como você pode estar?
Eu vejo o mundo em minha volta e não me encontro.
Não me querem aqui e nem em lugar nenhum. Não sentem minha falta e acho que nunca sentiriam... Nem mesmo se... Não! Nem nisso posso pensar, pois meu pensar é pecado, meu cogitar é profano, é tabu, é pra ser escondido nesse entulho que fiz da minha vida, naquele baú onde amontoei as minhas dores e que não posso abrir, pois quem vai me ajudar a arrumar?
Sou mãe e não queria ter sido – não diz isso é pecado!
Sou pai e não queria ter sido – não diz isso é pecado!
Sou mulher e não conheço meu corpo, tenho curiosidades, desejos e não posso confessar – fecha a perna, senta como moça!
Sou homem e escondo o choro e a dor que não posso confessar - vira homem, rapaz!
Sou filha e não gosto dos pais que tenho – deixa de ser ingrata menina!
Sou filho e não gosto dos irmãos que tenho – deixa de ser ingrato menino!
Sou pessoa que pesa mais que o que dizem ser devido e não consigo me conformar à forma que querem me ver – deixa de ser preguiçoso!
Sou pessoa e peso menos do que devia e não consigo ter as curvas com que querem me pegar – para de reclamar atoa!
Ditam-me e dizem-me o que fazer o que não fazer, mas não me ouvem.
Choro sozinho.
Sofro sozinho.
Nunca me ouvem.
Quando ouvem já têm discursos, receitas, propostas, mas não têm ouvidos.
Querem me convencer, me converter, me salvar, mas não têm ouvidos.
Eu não estou bem, não tô nada bem.
Eu me vejo nas manchetes das páginas policiais.
Eu me vejo na dor dos que pedem na rua.
Eu me vejo nos filmes tristes e comerciais de fim de ano.
Eu me vejo nos cachorros que vagam sem dono, sem ração, sem colo, sem nada.
Eu sou pior que eles, pois minha dor não tem justificativa, pois eu tenho tudo, não é?
Eu reclamo de barriga cheia, não é?
Eu sou abençoado, não é?
Não é? NÃO É?
NÃO!
NÃO É!
Eu não tô bem, não to nada bem!
Mas não se preocupe.
Não vou atrapalhar seu dia.
Vou seguir o protocolo que a boa educação determina.
Você vai terminar seu abraço polido e eu já terei armado o meu melhor e mais falso sorriso.
A maquiagem esconde as minhas olheiras e você não saberá de meu choro insone dessa madrugada que, para mim, foi eterna e aterrorizante. Eu vou acenar levemente a cabeça e dizer o que quer ouvir.

- Tudo bem, também!

Pronto, você está livre. Pode ir. Pode se sentar na sua mesa, pode seguir com a sua vida, pode me falar de suas amenidades, suas piadas, pode desligar o telefone, pode sair do whastapp, pode ir.
Eu? Eu vou ficar aqui mesmo. Não tenho para onde ir. Não posso fugir de mim. Não tenho liberdade e nem lugar seguro.
Eu vou me consumir nesse inferno eterno que é viver comigo e nessa dor que você não entende e que não quer entender, porque ela não te pertence.
Vai que tá tudo bem!
Tá tudo ótimo! 
Bom dia para você também!