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terça-feira, 19 de julho de 2016

A culpa é toda nossa!

A culpa é toda nossa!

Querido “çer umano” que estacionou seu HB20 atrás da minha moto ontem naquele bairro da Zona Sul, em frente ao prédio da minha terapeuta.
Querido “çer umano” que tinha um adesivo “A culpa não é minha, eu votei no Aécio” pregado em seu carro.
Querido “çer umano” que, ao manobrar seu carro caro, derrubou minha moto barata, quebrou a manete de freio, entortou meu retrovisor e arranhou a lataria, além de deixá-la um pouco aberta.
Querido “çer umano” que levantou a minha moto e a deixou em pé como se nada tivesse acontecido e foi pra sua casa com a consciência serena já que você votou no Aécio.
Querido “çer umano”, deixa eu te falar uma coisa: A CULPA É SUA! Não por que votou nesse cara aí. Não tô nem aí em quem você votou. Seu voto é sua manifestação de liberdade democrática e eu defendo a democracia. Se você quis violar o segredo do seu voto com esse adesivo no seu carro sem arranhões, com freio adequado, retrovisores no lugar certo e lataria em perfeito estado isso é problema seu! Não me importo nem um pouco com isso!
Mas eu me importo com a sua hipocrisia, ainda mais quando ela vai afetar diretamente no meu bolso!
Você é um político corrupto e ladrão!
É sim!
Só que você não foi eleito por ninguém, ninguém votou em você!
Você é político porque faz “politicagem”. Anda por aí como probo, justo e sem culpa nenhuma nessa bagunça que está o país, enquanto derruba a minha moto e sai como se nada tivesse acontecido.
Você é corrupto por que não assumiu a responsabilidade por um ato que fez e que deveria arcar com o prejuízo. Estava com pressa? Deixasse um bilhete no visor da moto! Avisasse ao rapaz da padaria de frente que viu sua ação e me contou! Sim, você foi visto e foi alvo de delação premiada! O problema é que você não vai muito ali, pelo que parece, então não vou poder te conduzir coercitivamente para a delegacia e fazê-lo pagar pelo que fez.
Você é ladrão, pois roubou diretamente de mim! Você sabe da minha condição financeira? Sabe quanto custa a manete de freio? Sabe quanto custa consertar a lataria da minha moto? Mas eu sei que o valor da minha moto não paga nem o valor de entrada desse seu HB20 e aposto como você deve ter até seguro para danos a terceiros!
Querido “çer umano”, fosse eu a arranhar a traseira desse seu carro ou a esbarrar nesse seu retrovisor e aposto como você desceria enfurecido a me xingar sem nem esperar que eu arcasse com o prejuízo, por que eu iria arcar sim!
Saiba, querido “çer umano”, que eu também sou uma política corrupta e ladra, pois também tenho os meus desvios que não queria mais ter. Também me aproprio do que não é meu. Também tenho os meus “jeitinhos” e sei que isso é errado.
Mas fique sabendo, querido “çer umano”, que eu tenho ao menos consciência disso e sei, ao menos em alguma medida, que A CULPA TAMBÉM É MINHA, não por quem eu votei ou deixei de votar, mas por ser quem eu ainda sou e não me eximo dela! Mas pelo menos não coloco na testa, no carro ou na moto um adesivo de moralidade que eu não possuo. Assumo a minha responsabilidade e reconheço quem sou.
E antes que você tente virar isso para os polos coxinha x mortadela, golpe x impeachment, direita x esquerda, querido “çer umano”, o que me indignou não foi seu voto, seu posicionamento político, a coxinha ou a mortadela de qualquer um. Repito, não estou nem aí para isso! Vote em quem quiser! Defenda democraticamente o que quiser! Mas não se exima da culpa que também é sua!
Seja honesto ou se esforce pra ser! Não “tire o seu da reta” quando lhe convém. Com esse prejuízo que me deu, você desviou verba do meu “SUS”, da minha “educação”, do meu “PIB”, por que eu tenho que arcar com um prejuízo que eu não produzi e dar as minhas pedaladas em meu orçamento para cobrir esse dano seu!
E não pense que eu estou “tirando o meu da reta”! Saiba que eu assumo a corrupção que eu pratico, justamente para não fazê-la mais! Justamente por que ela me incomoda! Justamente por que sei que não posso me eximir dessa culpa que também é minha.
Então, querido “çer umano”, de duas uma: ou tire esse adesivo hipócrita e continue derrubando motos por aí e fugindo de seus compromissos com o próximo sabendo que a culpa é sua, ou continue com seu adesivo, mas pare de dar desculpas e seja verdadeiramente honesto!

Não me importo com o que vai escolher, mas escolha ser verdadeiro com o que de fato é ou com o ideal do quer ser. Mas seja, querido “çer umano”, ao menos humano. Ou tente ser!

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Carta para Cícero

Carta para Cícero
“Oublie tes erreurs et tes peurs
Je les efface
A chaque faux pas que tu feras
Je tomberai à ta place
Mon seul plaisir sera de t'offrir une vie idéale
Sans peine et sans mal
Que tous tes amours soient sûrs
Tes amis sincères
Pour toi un domaine
Où la haine est la seule étrangère
Je ferai un monde où tout ira bien
Tu seras jamais seul tu manqueras de rien
Je voudrais pouvoir tout savoir
Pour te donner une vision plus claire
De ce mystère que l'on appelle la vie
Mon seul désir sera de t'offrir une vie idéale
Sans peine et sans mal
J'ai découvert qui je suis
Tout a changé le jour où je t'ai donné la vie
Et si jamais le monde t'es trop cruel
Je serai là toujours pour toi[1]
Je Serais Lá – Teri Moïse
Querido Cícero,
            Ainda não nos conhecemos. Você ainda está gestando em meus sonhos. Mas os sonhos são reais e eu te vejo entrando correndo pela porta da sala, jogando a chave na mesa e deixando a mochila em cima do sofá. Em cima do sofá, Cícero? Quantas vezes já te disse pra guardar no quarto?!
         Você volta correndo, pega a mochila e me devolve um “foi mal!”. Seu bom humor invade a sala e eu me esqueço do motivo pelo qual me irritei com você. Antes de você ir hibernar em seu quarto em meio a jogos, revistas e demais obviedades masculinas que minha imaginação constrói, senta no sofá que eu preciso conversar com você.
 Você viu o noticiário? Mataram mais amigos seus. Um tinha 16 anos e estava em um beco com um saco de pipoca doce nas mãos. Acharam que era droga. Ele foi julgado e condenado à pena máxima: um tiro solitário em sua nuca, enquanto outro colega desmaiava a seu lado para não ser atingido também.
Há pouco tempo outros amigos seus também foram condenados à pena de morte. Eles tinham saído para comemorar o primeiro emprego de um deles, não era? Dizem que eles levantaram às mãos, que não reagiram, mas os "homens" sempre dizem que houve troca de tiros, armas, gangues, tráficos. Na internet acham fotos de seus amigos com armas, tarjas no rosto ou qualquer justificativa que autorizasse a condenação à pena capital. Soube que a mãe de um deles faleceu neste final de semana... isso, foi por depressão.
         Cícero, tem pena de morte no Brasil sim. Tem para você, não para todo mundo, mas pra você tem, meu filho. O Brasil está em guerra contra você. Por quê? Porque você é preto, você é pobre, você é favelado (ou parece), você é suspeito, você é meliante, você é “de menor”, você é alvo e tem uma bala aí fora procurando a sua cabeça para finalmente te eliminar e você passar a ser número, percentual e estatística.
         Por isso Cícero, não sai sem documento. Não olha nos olhos dos "homens”, abaixa a cabeça, abre as pernas, coloca a mão na parede, tira o boné e responde “sim Senhor, não Senhor”. Não contesta os "homens”, engole a raiva, engole a revolta, engole o choro, engole tudo, mas não responde, Cícero, por que eu não quero ter que lavar teu sangue na calçada da rua.
Os "homens” não querem saber seu nome, querem seus antecedentes. Sua melanina o condena antes que você possa abrir a boca pra tentar se defender. Você já está errado e é um preto safado, mesmo que tenha só seus 12 anos. Os "homens” têm armas que te esperam, que foram treinadas para matar seu corpo, para espalhar seu sangue, para te ver como alvo e sentir seu cheiro de suspeito à distância. Por isso, não responde, não enfrenta, não olha nos olhos, abaixa a cabeça vagabundo e volta vivo pra casa, que eu estou esperando e rezando pra isso.
Os "homens” têm armas e a “sociedade” tem as justificativas que os absolvem, mas eles não podem matar sua alma. 
Diante dos “homens” você se cala, mas com a “sociedade” você grita, expõem, extravasa, luta.  Não deixa que eles te coloquem no muro, não ouse abrir as pernas, tirar seu boné e não abaixa essa cabeça. Não apresenta documento para quem não tem direito ou obrigação de te exigir isso, sob a justificativa de que “cumpre a lei”. Expõe o racismo deles, por que racismo velado não se discute, não se resolve.
Não, Cícero, não deixa na dúvida e não fique com raiva reprimida. Não pediram pra você cortar o cabelo por causa de surto de piolho, ou pra melhorar a aparência, ou por que o cargo exige, ou por que você tá desleixado, ou por que tá parecendo desempregado, mendigo, drogado. Não, Cícero. É racismo, mascarado do que for, mas é racismo. Por que quando é o branco de dread, de black, de turbante, isso é moda, tendência, ele é descolado, o que for. Em você é favela, sujeira, descaso, racismo.
Os "homens” matam seu corpo e por isso eu quero que você se cale diante deles.
Mas a “sociedade” tem matado muitas almas, só que a sua eles não vão matar. Diante dela você não vai se calar e nem vai ter que se explicar. Quem tem que se explicar é ela, quem tem que confessar o racismo é ela e quem tem que engolir o choro quando você ocupar a casa grande vai ser ela, por que você vai ocupar.
Vai ser visto de branco sem piadas de “pipoqueiro ou pai de santo”. Vai ser Doutor, vai ser Professor, vai ser chamado de Senhor. Vai entrar em bancos sem voltar na porta de detecção de metal, vai ter motorista e carro de luxo sem ser parado na blitz, vai poder ir à esquina de moletom comprar seu lanche no domingo à noite sem que atravessem a rua quando te virem colocando o capuz na cabeça pelo frio. Vai ser o que quiser e vai estar onde quiser, por que o mundo te pertence. 
Você não vai ser a justificativa de ninguém pra esconder preconceito. Não aceite ser a cota de amizade preta que mascara o racismo do seu colega, mas aceite todas as cotas que o governo te ofertar. Isso não é vitimismo, desigualdade, ajuda, injustiça. Isso é obrigação, por que seu tataravó estava levando chibatada pelo tataravó do garoto que senta a seu lado na sala de aula. Seu tataravó saiu da África amarrado e sobreviveu nos porões, nos quilombos, nas senzalas, nos pelourinhos. Enquanto os outros têm árvores genealógicas, você não tem em como rastrear de onde veio por que a sua história não existe, a Àfrica é um “país” aidético, faminto, pobre, imundo, primitivo e sem cultura. Seus antepassados nem alma tinham e não tem nem 150 anos que você é visto como pessoa com direitos neste mundo que prega a democracia racial.
         Por isso, Cícero, eu não corto seu cabelo e eu te falo de heróis negros que o mundo não conhece, mas que você tem que conhecer. 
          Mas eu não posso lutar contra as armas dos “homens” e a “sociedade” ainda alimenta o imaginário coletivo em que você é vilão. Então, coloca o documento no bolso e não sai sem ele. Abaixa a cabeça pros “homens” mão não se cala pra “sociedade”, por que mudando ela, os "homens” mudam. 
         Eu luto com você, meu filho, mas eu não quero te ver estampado nas páginas do jornal, não quero te reconhecer no IML, não quero te sepultar numa quarta-feira à tarde e nem ter que lavar seu sangue na calçada na quinta-feira. Não quero que questionem meu luto e nem a idoneidade que eu te dei. Escolha suas batalhas, Cícero. Lute contra os que querem levar sua alma, mas mantenha-se vivo, não pelos "homens", mas por mim.




[1] Esqueça teus erros e teus medos, eu os deixei de lado/ E cada passo em falso que tu deres, eu cairei no teu lugar/ Meu único prazer será te oferecer uma vida ideal, sem dor e sem mal/Que todos teus amores sejam seguros e teus amigos sinceros/ Para ti um lugar onde o ódio é o único estranho, eu farei um mundo onde tudo esteja bem/ Tu nunca estará sozinho não te faltará nada/ Eu gostaria de poder saber tudo pra te dar uma visão mais clara desse mistério que se chama vida/ Meu único desejo será te oferecer uma vida ideal sem dor e sem mal/ Eu descobri quem eu sou/ Tudo mudou no dia em que eu te dei a vida/ E se o mundo te for muito cruel , eu estarei sempre contigo

Carta para Cícero

Carta para Cícero
“Oublie tes erreurs et tes peurs
Je les efface
A chaque faux pas que tu feras
Je tomberai à ta place
Mon seul plaisir sera de t'offrir une vie idéale
Sans peine et sans mal
Que tous tes amours soient sûrs
Tes amis sincères
Pour toi un domaine
Où la haine est la seule étrangère
Je ferai un monde où tout ira bien
Tu seras jamais seul tu manqueras de rien
Je voudrais pouvoir tout savoir
Pour te donner une vision plus claire
De ce mystère que l'on appelle la vie
Mon seul désir sera de t'offrir une vie idéale
Sans peine et sans mal
J'ai découvert qui je suis
Tout a changé le jour où je t'ai donné la vie
Et si jamais le monde t'es trop cruel
Je serai là toujours pour toi[1]
Je Serais Lá – Teri Moïse
Querido Cícero,
            Ainda não nos conhecemos. Você ainda está gestando em meus sonhos. Mas os sonhos são reais e eu te vejo entrando correndo pela porta da sala, jogando a chave na mesa e deixando a mochila em cima do sofá. Em cima do sofá, Cícero? Quantas vezes já te disse pra guardar no quarto?!
         Você volta correndo, pega a mochila e me devolve um “foi mal!”. Seu bom humor invade a sala e eu me esqueço do motivo pelo qual me irritei com você. Antes de você ir hibernar em seu quarto em meio a jogos, revistas e demais obviedades masculinas que minha imaginação constrói, senta no sofá que eu preciso conversar com você.
 Você viu o noticiário? Mataram mais amigos seus. Um tinha 16 anos e estava em um beco com um saco de pipoca doce nas mãos. Acharam que era droga. Ele foi julgado e condenado à pena máxima: um tiro solitário em sua nuca, enquanto outro colega desmaiava a seu lado para não ser atingido também.
Há pouco tempo outros amigos seus também foram condenados à pena de morte. Eles tinham saído para comemorar o primeiro emprego de um deles, não era? Dizem que eles levantaram às mãos, que não reagiram, mas os "homens" sempre dizem que houve troca de tiros, armas, gangues, tráficos. Na internet acham fotos de seus amigos com armas, tarjas no rosto ou qualquer justificativa que autorizasse a condenação à pena capital. Soube que a mãe de um deles faleceu neste final de semana... isso, foi por depressão.
         Cícero, tem pena de morte no Brasil sim. Tem para você, não para todo mundo, mas pra você tem, meu filho. O Brasil está em guerra contra você. Por quê? Porque você é preto, você é pobre, você é favelado (ou parece), você é suspeito, você é meliante, você é “de menor”, você é alvo e tem uma bala aí fora procurando a sua cabeça para finalmente te eliminar e você passar a ser número, percentual e estatística.
         Por isso Cícero, não sai sem documento. Não olha nos olhos dos "homens”, abaixa a cabeça, abre as pernas, coloca a mão na parede, tira o boné e responde “sim Senhor, não Senhor”. Não contesta os "homens”, engole a raiva, engole a revolta, engole o choro, engole tudo, mas não responde, Cícero, por que eu não quero ter que lavar teu sangue na calçada da rua.
Os "homens” não querem saber seu nome, querem seus antecedentes. Sua melanina o condena antes que você possa abrir a boca pra tentar se defender. Você já está errado e é um preto safado, mesmo que tenha só seus 12 anos. Os "homens” têm armas que te esperam, que foram treinadas para matar seu corpo, para espalhar seu sangue, para te ver como alvo e sentir seu cheiro de suspeito à distância. Por isso, não responde, não enfrenta, não olha nos olhos, abaixa a cabeça vagabundo e volta vivo pra casa, que eu estou esperando e rezando pra isso.
Os "homens” têm armas e a “sociedade” tem as justificativas que os absolvem, mas eles não podem matar sua alma. 
Diante dos “homens” você se cala, mas com a “sociedade” você grita, expõem, extravasa, luta.  Não deixa que eles te coloquem no muro, não ouse abrir as pernas, tirar seu boné e não abaixa essa cabeça. Não apresenta documento para quem não tem direito ou obrigação de te exigir isso, sob a justificativa de que “cumpre a lei”. Expõe o racismo deles, por que racismo velado não se discute, não se resolve.
Não, Cícero, não deixa na dúvida e não fique com raiva reprimida. Não pediram pra você cortar o cabelo por causa de surto de piolho, ou pra melhorar a aparência, ou por que o cargo exige, ou por que você tá desleixado, ou por que tá parecendo desempregado, mendigo, drogado. Não, Cícero. É racismo, mascarado do que for, mas é racismo. Por que quando é o branco de dread, de black, de turbante, isso é moda, tendência, ele é descolado, o que for. Em você é favela, sujeira, descaso, racismo.
Os "homens” matam seu corpo e por isso eu quero que você se cale diante deles.
Mas a “sociedade” tem matado muitas almas, só que a sua eles não vão matar. Diante dela você não vai se calar e nem vai ter que se explicar. Quem tem que se explicar é ela, quem tem que confessar o racismo é ela e quem tem que engolir o choro quando você ocupar a casa grande vai ser ela, por que você vai ocupar.
Vai ser visto de branco sem piadas de “pipoqueiro ou pai de santo”. Vai ser Doutor, vai ser Professor, vai ser chamado de Senhor. Vai entrar em bancos sem voltar na porta de detecção de metal, vai ter motorista e carro de luxo sem ser parado na blitz, vai poder ir à esquina de moletom comprar seu lanche no domingo à noite sem que atravessem a rua quando te virem colocando o capuz na cabeça pelo frio. Vai ser o que quiser e vai estar onde quiser, por que o mundo te pertence. 
Você não vai ser a justificativa de ninguém pra esconder preconceito. Não aceite ser a cota de amizade preta que mascara o racismo do seu colega, mas aceite todas as cotas que o governo te ofertar. Isso não é vitimismo, desigualdade, ajuda, injustiça. Isso é obrigação, por que seu tataravó estava levando chibatada pelo tataravó do garoto que senta a seu lado na sala de aula. Seu tataravó saiu da África amarrado e sobreviveu nos porões, nos quilombos, nas senzalas, nos pelourinhos. Enquanto os outros têm árvores genealógicas, você não tem em como rastrear de onde veio por que a sua história não existe, a Àfrica é um “país” aidético, faminto, pobre, imundo, primitivo e sem cultura. Seus antepassados nem alma tinham e não tem nem 150 anos que você é visto como pessoa com direitos neste mundo que prega a democracia racial.
         Por isso, Cícero, eu não corto seu cabelo e eu te falo de heróis negros que o mundo não conhece, mas que você tem que conhecer. 
          Mas eu não posso lutar contra as armas dos “homens” e a “sociedade” ainda alimenta o imaginário coletivo em que você é vilão. Então, coloca o documento no bolso e não sai sem ele. Abaixa a cabeça pros “homens” mão não se cala pra “sociedade”, por que mudando ela, os "homens” mudam. 
         Eu luto com você, meu filho, mas eu não quero te ver estampado nas páginas do jornal, não quero te reconhecer no IML, não quero te sepultar numa quarta-feira à tarde e nem ter que lavar seu sangue na calçada na quinta-feira. Não quero que questionem meu luto e nem a idoneidade que eu te dei. Escolha suas batalhas, Cícero. Lute contra os que querem levar sua alma, mas mantenha-se vivo, não pelos "homens", mas por mim.




[1] Esqueça teus erros e teus medos, eu os deixei de lado/ E cada passo em falso que tu deres, eu cairei no teu lugar/ Meu único prazer será te oferecer uma vida ideal, sem dor e sem mal/Que todos teus amores sejam seguros e teus amigos sinceros/ Para ti um lugar onde o ódio é o único estranho, eu farei um mundo onde tudo esteja bem/ Tu nunca estará sozinho não te faltará nada/ Eu gostaria de poder saber tudo pra te dar uma visão mais clara desse mistério que se chama vida/ Meu único desejo será te oferecer uma vida ideal sem dor e sem mal/ Eu descobri quem eu sou/ Tudo mudou no dia em que eu te dei a vida/ E se o mundo te for muito cruel , eu estarei sempre contigo