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quarta-feira, 22 de junho de 2016

Misericórdia

MISERICÓRDIA
“Nos movimentos do mundo
Cada um tem seu momento
Todos têm um pensamento
De vencer a solidão
E quem pensar um minuto
Saberá tudo dos ventos
E se tiver sentimento
Estenderá sua mão
Nos movimentos do mundo
Quem não teve um sofrimento
E não guardou na lembrança
Os restos de uma paixão
Coração recolha tudo
Essas coisas são do mundo
Só não guarde mais o medo
De viver a vida, não
Nos movimentos do mundo
Requerer perdas e danos
É abrigar desenganos
Sem amor e sem perdão
Nos horizontes do mundo
Não haverá movimento
Se o botão do sentimento
Não abrir no coração”
Nos Horizontes do Mundo – Paulinho d Viola  

Eu tinha oito anos, pelo que me lembro. Oito anos, uma mochila mais pesada do que deveria, cabelos amarrados em um penteado que me irritava por estar apertado demais, tênis rosados, uniforme suado pelo recreio agitado e os olhos cheios de lágrimas. Eu tinha oito anos e estava sentada no meio-fio tentando me lembrar onde eu teria deixado o vale-transporte da passagem de ônibus de volta para casa. Eu tinha oito anos e minha limitação infantil me via como perdida para sempre em meio àqueles inúmeros desconhecidos e a possível ira da minha mãe por ter perdido aquele vale-transporte... Chorava e chorava... eu, minha mochila, meus tênis, meu penteado e meus oito anos. Eu repetia a mim mesma: “para de chorar, daqui apouco alguém vai ver e vai vir te fazer mal”. 
Em meio àquela gente estranha e às lágrimas salgadas, um homem coloca a mão no meu ombros e pergunta “o que foi, minha filha?”. Eu e meus oitos anos medrosos e chorosos só lhe devolveram um olhar arredio e perdido, mas a boca instintiva pediu ajuda: “não tenho como voltar para casa”. O homem limpou meu rosto, colocou a mão no bolso e me deu um vale transporte. Ele ficou do meu lado até meu ônibus chegar, não me perguntou qual ônibus eu pegaria, mas esperou até que eu caminhasse para a porta de um deles. Eu entrei rápido limpando o rosto. Ele me olhou pelas janelas e acenou com a cabeça. Eu não sei seu nome, ele não me perguntou qual era o meu. Eu nunca lhe disse obrigada.
Eu tinha catorze anos, pelo que me lembro. Catorze anos, muitas espinhas, um cabelo alisado, fruto de minha inadequação íntima, um corpo que desenvolvia formas femininas alheias ao meu querer e à minha conscientização da sexualidade pulsante do mundo à minha volta e uma cabeça que ainda sonhava com artistas da TV, cantores e seus passos orquestrados, papel de carta e jogos de verdade ou consequência. Eu tinha catorze anos e estava em pé no ônibus lotado tentando me equilibrar quando vi o homem que olhava para mim. Seus olhos me despiam. Desciam do rosto, para o pescoço, para a cintura, para as pernas. Ele não parava de me olhar. Eu, então, tive muito medo e, em minha mente, articulava o que poderia fazer. Desceria em uma rua escura, caminharia para casa sozinha, não tinha como avisar a alguém que me esperasse na esquina. O homem olhava para mim. Meus olhos se encheram d’água e eu repetia a mim mesma: “não chora, ele vai saber que você está com medo”. O homem olhava para mim. O ônibus se esvaziava e, então, eu me sentei nos bancos ao fundo, mas o homem virava para trás e me olhava, virava pra trás e me despia, virava pra trás e me enchia de medo. Meu ponto passou e, quando vi um comércio semiaberto em um ponto distante do meu, saltei do ônibus rapidamente e entrei na sorveteria que já se fechava dizendo baixo ao senhor que estava cerrando a porta: “espera, moço, me ajuda!”.
O homem desceu atrás de mim, mas ficou em pé do outro lado da rua. O senhor com o cenho entalhado de rugas, cansado pelo dia e pela vida, viu meu olhar de súplica, viu o homem que me olhava e, com a sabedoria que a idade traz, me abraçou dizendo alto “que bom que você chegou minha filha, já estava preocupado!”. Eu lhe devolvi o abraço enquanto ele dizia em meu ouvido: “calma, eu te levo em casa”. Ele terminou de fechar sua sorveteria. O homem continuava me olhando do outro lado da rua. O Senhor me deu a mão e disse: “vamos?”. Eu o guiei pela rua escura e fomos para minha casa. Andamos por quinze minutos de mãos dadas. O senhor não me perguntou nada, apenas dizia, “calma, ele não está vindo atrás de nós, calma minha filha”. O senhor me acompanhou até a porta de casa. O senhor esperou que meu pai abrisse o portão e lhe contou o ocorrido. O senhor me viu entrar chorando pela sala e, ao longe, acenou com a cabeça pra mim. Eu não sei seu nome, ele não me perguntou qual era o meu. Eu nunca lhe disse obrigada.
Eu tinha vinte anos, pelo que me lembro. Vinte anos, cabelos cacheados, um vestido que dançava no ritmo da música, amigos, minha baixa auto estima e a insegurança que me faziam temer ficar só. Eu tinha vinte anos estava dançando embalada pela música esquecida dos abusos que sofria em meu relacionamento quando ele puxou meu braço e disse ao meu ouvido: “para de se comportar como uma puta!”. Eu senti muita raiva, muita tristeza, muita vergonha, muita inadequação. Tentei ensaiar passos mais contidos para que não percebessem a tragédia que era encenada em minha mente e que queria se esvair pelos meus olhos em pranto incontido. Eu repetia a mim mesma: “não chora, ele vai brigar mais ainda com você”. Mas minha dor foi mais forte e as lágrimas teimosas caíram dançando pelo meu rosto quente. Mas eu dançava, virava o rosto, respirava fundo, dançava, a música vai me tirar daqui, a música vai me fazer esquecer...
Em meio àqueles jovens que dançavam uma mulher olhou pra mim. Ela veio caminhando em minha direção e me abraçou. Ao meu ouvido ela me disse: “não sei o que ele te falou, minha amiga, mas não é verdade, tá? Você é linda e dança muito bem”. Ela me deu um beijo no rosto molhado e salgado pelo choro e se afastou de mim. Eu a busquei com o olhar e, ao longe, ela acenou com a cabeça pra mim. Eu não sei seu nome, ela não me perguntou qual era o meu. Eu nunca lhe disse obrigada.
Eu tinha vinte e oito anos, pelo que me recordo. Eu tinha vinte e oito anos, um par de tênis ainda rosados, as pernas cansadas em passadas apressadas na orla da lagoa, o rosto suado e a respiração ofegante. Eu tinha vinte e oito anos e tinha superestimado a minha capacidade de corrida e, solitária, agonizava no caminho de volta, sem que meu orgulho permitisse que eu reduzisse a passada. Eu repetia a mim mesma: “não para, todos vão te achar fraca e está quase chegando”.
Foi então que senti dois braços a meu lado. Um casal de corredores parara a meu lado, me dando os braços, cada um de um lado. A moça sorria e me estendia um copo com água, enquanto o moço, com seus óculos de corredor, dizia entre sorrisos e respiração ofegante: “vamos lá, a gente consegue ir até o museu de arte!”. Eles permaneceram do meu lado, me incentivando e praticamente me carregando nessa reta final que nunca chegava. Não pretendia ir até o museu, mas não lhes disse isso, apenas corri e aceitei a água oferecida. Corremos entre frases de apoio, suor, céu limpo e passadas apressadas. No museu, os dois seguiram sua corrida ritmada e coordenada. Eu os acompanhei com o olhar e eles me acenaram com a cabeça. Eu não sei seus nomes, eles não me perguntaram qual era o meu. Eu nunca lhes disse obrigada.
Hoje, ao que me recordo, eu ainda tenho meus vinte oito anos. Tenho vinte e oito anos e vejo pessoas morrerem de frio na rua. Eu tenho vinte e oito anos e joguei uma vasilha de leite vencido em minha geladeira no lixo, faço dieta para emagrecer meu egoísmo acumulado em gordura, enquanto muitos morrem de fome no mesmo planeta que eu. Tenho vinte e oito anos e dou descarga, lavo a varanda e as janelas de minha casa com água potável, floreteada e clorificada, no mesmo planeta em que se mata e se morre por sede.

Moço que me deu o vale-transporte, senhor que me acudiu naquela noite em meus catorze anos, moça bonita que me entendeu e me consolou naquela festa, casal de corredores que me acudiu quando eu não tinha fôlego nem para pedir ajuda, eu nunca lhes disse obrigada. E nem vou lhes dizer agora. Quero pedir que me desculpem. Perdoem-me, pois a misericórdia que tiveram comigo ainda não me comoveu como deveria. As dores dos outros ainda não doem em mim, como sei que as minhas pequenas mazelas tocaram vocês naqueles dias que, pra mim, foram tão frios, famintos e sedentos como desses meus semelhantes em suas grandes mazelas. Perdoem essa minha indiferença para miséria cotidiana que nem me incomoda mais e por eu ainda encontrar motivos em minha riqueza para reclamar da vida que julgo merecer. Desculpem-me por fazer tão pouco, por não enxergar quem sofre a meu lado, por não viver a miséria do coração alheio, como vocês viveram a miséria que habitava em mim.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Por favor, explique pro seu filho


Por favor, explique pro seu filho
“Been travelling these wide roads for so long
My heart's been far from you, 10 000 Miles gone
Oh, I wanna come near and give you
Every part of me, but there is blood on my hands
And my lips are unclean
In my darkness I remember Momma's word reoccur to me
"Surrender to the good lord and he'll wipe your slate clean"
Dip me in your smooth water I go in
As a man with many crimes come up for air
As my sins flow down the jordan
Oh, I wanna come near and give you
Every part of me but there is blood on my hands
And my lips are unclean
Take me to your river I wanna go
Take me to your river I wanna know”
River – Leon Bridges[1]

        Mas me diz uma coisa, com que frequência você fala com seu filho? A bem da verdade, você se lembra de que ele existe? Falo por mim mesma, meu amigo, pois, pelo que me lembro, eu havia deixado a minha criança abandonada em seu balanço no parquinho desde sempre ou desde que tive ciência de que ela existia. Ali ela ficou por anos e anos e, desde a última conversa que tive com ela, ali ela permanece por meses e meses... É, tenho sido mesmo negligente...
         Quando você me pergunta então “como vou explicar isso pro meu filho” eu te digo, tem mesmo muito o que lhe explicar. Ainda mais depois de tanto tempo assim sem lhe responder às perguntas, sem lhe consultar os desejos, sem ouvir às reclamações e histórias, sem mesmo saber que ele existia.
         Diz-me meu amigo, como vai explicar pro seu filho que nem sempre você consegue ou conseguirá cumprir as promessas que faz a si mesmo e que isso não o transforma em uma pessoa pior? Como vai explicar que, se seus pais não lhe deram o afeto ou atenção que você julgava merecer, isso não quer dizer que você não mereça ser amado e mais, que isso não é motivo para tratá-lo da mesma forma, com as mesmas cobranças, o mesmo rigor, desamor, desatenção?
Como você vai lhe dizer que o real motivo das “diferenças” te revoltarem tanto é por que, na verdade, você se sente aviltado por não se aceitar imperfeito como é? Como vai lhe explicar que você tem desejos, vontades e pensamentos inconfessáveis até a si mesmo? Como vai dizer a ele que todo humano é, ainda, em alguma medida, animal e que negar isso e fingir que não o é, na verdade, o faz cada vez mais animal e menos humano, já que ignorar alimenta a irracionalidade que cega, mutila, agride, mata, silencia?
Como, meu amigo, dizer a seu filho que a sua visão de mundo na verdade não é nem mesmo sua, mas é fruto da sua posição social, do seu cargo, do seu posto, do que vão pensar de você? Como dizer que isso é mais importante do que o que seu filho tem pedido e suplicado nesses anos todos em que foi legado à própria sorte e à solidão da castração constante que você o impôs?
Como você vai explicar a seu filho que seu olhar é temperado da malícia que você sente em seus poros, que povoa seu pensamento recheado de imagens e intenções escusas e que, de ordinário, você não dá vazão ao que de fato sente por medo, por conveniência ou apenas pela impossibilidade momentânea de fazê-lo sem ser por isso incriminado? Como vai contar a ele que a agressividade e violência com que você lança pedras à mulher adúltera advêm da traição que você carrega em sua consciência, dos pecados que você não confessa ao mundo, mas que habitam seus pesadelos, seu espelho a cada manhã, seu alimento engolido às pressas, sua impaciência com os que estão à sua volta?
Por isso meu amigo, eu lhe peço, por favor, explique pro seu filho. Diga-lhe que ele é uma criança que merece seu afeto e peça perdão por tê-lo abandonado há tanto tempo, ou desde sempre... 
Faça às pazes com ele para poder fazer de si um adulto mais humano. Um adulto que não vê cores, times, deficiências, orientações, escolhas, posicionamentos, formas de corpo, roupas, votos, valores, mas apenas pessoas. Um adulto que não ignora que é, à sua medida, preconceituoso, intolerante, agressivo, machista, homofóbico, racista, injusto, maledicente, gordofóbico, corrupto, criminoso, misógeno, imoral, mas sabe que reconhecer a sua fraqueza não implica em entregar-se a ela, mas lhe possibilita discutir sem agredir, rever seus conceitos e reformulá-los a todo tempo, sendo mais forte, mais racional, mais flexível, mais fraterno, mais humano.
O quanto antes vocês se encontrarem melhor. Aposto como você o abandonou por volta dos seis ou sete anos... Pelo menos foi quando eu abandonei minha criança... me lembro até mesmo do dia. Estava no terceiro período da pré-escola e a estagiária da professora, durante o recreio, disse que não me empurraria no balanço, pois eu era muito pesada. Desde esse dia eu tenho agredido minha filha, lhe chamando de gorda, incapaz, burra, feia, enfim... Não convém mais dizero que já venho lhe repetindo por vinte anos.
Por isso, meu amigo, eu descontei no mundo a ira que carregava por mim mesma, por não me perdoar por ser falível, por ser humana, por ser quem sou. Mas eu tento conversar com minha filha e explicar as coisas desse mundo a ela. Tenho sido negligente, já te disse antes, mas ao menos já nos acertamos em muitos pontos, o que hoje me impede de agredir rotineiramente os que diferem do que eu acredito ser o correto, pelo menos é o que tento...
Por favor, meu amigo, explique pro seu filho. Antes que você o traga ao mundo e eduque um ser tão carente, doente e sofrido como você. Converse e lhe ensine a ver no mundo o amor, a sentir o acolhimento e a compreensão que advém da auto aceitação, o respeito ao próximo por respeitar a si mesmo, a alegria de transitar pela vida sem desviar o curso de quem caminha a seu lado, a beleza de saber relacionar-se com franqueza por saber que será amado, já que aprendeu e conseguiu, enfim, amar a si mesmo.




[1]Viajei por estas estradas amplas por tanto tempo/ Meu coração está longe de você/ A mais de 10 mil milhas/ Eu quero chegar perto e te dar/Cada parte de mim/ Mas há sangue em minhas mãos/ E meus lábios estão sujos/ Em minha escuridão, eu lembro/As palavras de minha mãe voltam à tona/ Me mergulhe em suas águas tranquilas/Eu entro nelas/ Como um homem cheio de crimes/ Eu vou à superfície para respirar/Enquanto meus pecados flutuam pelo Jordão/ Eu quero chegar perto e te dar/ Cada parte de mim/ Mas há sangue em minhas mãos/ E meus lábios estão sujos/ Me leve ao seu rio/Eu quero ir Senhor, por favor me mostre/Me leve ao seu rio/ Eu quero saber” Tradução livre

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Perspectivas

“No, stanotte, amore,
non ho più pensato a te.
Ho aperto gli occhi
per guardare intorno a me.
E, intorno a me,
girava il mondo come sempre
Gira il mondo, gira
nello spazio senza fine,
con gli amori appena nati,
con gli amori già finiti,
con la gioia e col dolore
della gente come me
Oh, mondo!
Soltanto adesso io ti guardo.
Nel tuo silenzio io mi perdo.
E sono niente accanto a te.
Il mondo
non si è fermato mai un momento.
La notte insegue sempre il giorno
Ed il giorno verrà”[1]
Il Mondo – Jummy Fontana

         Namorar: verbo transitivo direto, e, por isso, se bem me lembro das aulas de português nas gavetas empoeiradas da minha memória, tem complemento a ele ligado sem preposição, sem intermediários, sem condições, finalidades ou razões.
         O português do dia a dia, do pão com ovo, da dona Maria, mudou-lhe o sentido e, sem querer, deu-lhe um peso que não tem. “O rapaz namora com a moça.” “Com”.... isso não estava previsto na raiz gramatical e isso deu ao namoro o peso da reciprocidade, da resposta, da bilateralidade e, por fim, da exclusividade. Mas em sua raiz, isso não é namoro.
         Enquanto corria em uma dessas manhãs de domingo, passei por diversos quadros entres as passadas apressadas, a respiração ofegante e o suor que temperava meu rosto. Ao longe um grupo imenso parava em uma curva, olhando as águas turvas da lagoa, apontando, tirando fotos, chamando outros para verem, como hienas barulhentas e amontoadas. Minha mente viciada na espera pelo pior, já projetou um corpo na água suja e aqueles urubus humanos ali estariam para registrar sua morte solitária, tornando-a coletiva nas redes, nas mídias, no mundo. Mas não. Era apenas o lendário jacaré que se espreguiçava no sol sobre a terra seca, sobrevivente daquela poluição humana e se deixando posar para os flashes e risadas dos transeuntes. Aquele jacaré que se espreguiçava não percebia como despertava a criança de cada um daqueles que paravam, como ele evocava as risadas e olhares iluminados de adultos taciturnos que se transformavam, mesmo que por um instante, em crianças embasbacadas.
         As passadas continuaram e em outra curva vi ao longe balões vermelhos levados por uma moça com sua câmera fotográfica repousando em seu peito. Novamente a rabugez de minha mente criticou os ensaios feitos a céu aberto, em meio aos estranhos com suas poses fabricadas, clichês, descontextualizadas. Mas ao me aproximar, a mente rabugenta teve que ceder ao apelo evidente do amor. Amor em forma de tule e brilho das garotas com seus vestidos coloridos, aos quinze anos traçando sonhos e planos que quem sabe se perderão no tempo, mas que ao menos estariam registrados ali como lembrança. Amor que preenchia as barrigas das mulheres com olhares maternais, inundando de sonhos e expectativas as famílias, gerando contagens regressivas em calendários, cheiro de talco, de leite, chá e mingau. Amor em forma de casais enamorados com suas flores, vestidos e ternos, com as mentes recheadas de planos e possibilidades, traçando um futuro, uma família, uma vida em suas trocas de olhares e gestos de carinho.
         Minhas passadas diminuíram o ritmo, seja pelo cansaço da corrida seja pelo cansaço da vida, e sentei-me ao meio-fio,me permitindo ficar ali, namorando a vida. O sol que queimava minha pele, o vento que acariciava meu rosto afastando o suor, os risos que invadiam meus ouvidos, as cenas que se desenhavam à minha frente e que traziam em si traços de histórias infinitas, com suas alegrias, tristezas, mas todas com relances e temperos do amor.
         Os óculos rotineiros e cansados viciam os olhares, o foco, percebendo à volta apenas o que exala tragédia, crítica, repulsa, sofrimento. È preciso namorar a vida, não “com” ela. A vida se desenha e se reinventa a todo instante em minha frente, dançando e alterando destinos ao sabor de seus desígnios, bem distante do meu querer, do fiel de minha balança íntima.
 É preciso, portanto, ter olhos enamorados. Namorar o presente, encantar-se por sua fugacidade, descobrir novos motivos de felicidade, novos enredos e razões que justifiquem as atitudes que se fazem diante de meu olhar apressado.
Namorar a vida como jovem inquieta que é. Sempre em movimento, em ritmos distintos, em trilhas personalíssimas que me convidam a dançar mesmo que eu desconheça a música. É ela quem me guia, se eu permitir me enamorar.
 E como jovem ela não me promete nada e sei que mesmo que o fizesse suas juras seriam vãs, imprevidentes, impensadas, como todas as paixões. Mas isso não me impede de namorá-la, de me entregar em seus braços, sentir seu cheiro doce e ver tudo que há de belo e bom em seu ritmo alucinado.
Namorar, já disse, é verbo transitivo direto. Eu me entrego, me lanço sem que seja preciso os braços abertos do outro a me receber. Se ali eles estiverem, que bom será. Se não, valeu a oportunidade do vôo, a beleza do caminho e as cores que se escondiam da rotina cinzenta do meu olhar.




[1] Não, esta noite amor/ Não pensei mais em ti/ Abri os olhos/ Para olhar em torno de mim/ E em torno de mim/ Girava o mundo como sempre/ Gira, o mundo gira/ No espaço sem fim/ Com os amores apenas nascidos/ Com os amores já terminados/ Com a felicidade e com a dor/ Das pessoas como eu/ O mundo/ Somente agora, eu te vejo/ Em teu silencio eu me perco/ E não sou nada ao teu lado/ O mundo/ Não parou nunca um momento/ A noite persegue sempre o dia/ E o dia virá. Tradução livre

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Girassol


Girassol

“Quando já não tinha espaço pequena fui
Onde a vida me cabia apertada
Em um canto qualquer acomodei
Minha dança os meus traços de chuva
E o que é estar em paz
Pra ser minha e assim ser sua(...)
Quando já não procurava mais
Pude enfim, nos olhos teus vestidos d'água
Me atirar tranquila daqui
Lavar os degraus, os sonhos e as calçadas
E assim no teu corpo eu fui chuva
Jeito bom de se encontrar
E assim no teu gosto eu fui chuva
Jeito bom de se deixar viver(...)
E mesmo que em ti me perca
Nunca mais serei aquela
Que se fez seca

Vendo a vida passar pela janela(...)
Quando fui chuva -  LuisKiari E Caio Soh


Heliotrópica, é o que dizem de ti girassol.
Heliotrópica.
Que se volta para o sol, que segue o sol, que se desperta pelo sol, que acompanha a caminhada do sol pela face, pensamentos, sonhos e aspirações.
Heliotrópica, também sou eu, girassol. 
Mas não conhecia esta terminologia.
Para mim, isso era amor.
Que me motiva, dirige meus olhos, minha face, meus pensamentos, que precisa me despertar.
Meus pés estão presos à terra, como os seus girassol.
Eles se apegam a este solo frio, úmido, que me nutre e me mantém de pé. 
Mas ele não me toca, não me inspira, não me faz mover, não pode me despertar. Não posso fazer dele meu centro, meu norte.
O solo tem pedras de indiferença, troncos secos de maldade, espinhos esquecidos por farpas ditas em palavras impensadas, vermes de preconceito e agressividade que corroem as raízes dos incautos que não se voltam, se fortalecem e se guiam pelo sol.
O que me motiva é meu sol: Amor.
Apenas ele. Em raio, calor, energia.
Me despertam os encontros das tardes de sábado, em que nos unimos para cantar a vida, falar do tempo que temos e dos tempos que ainda hão de vir. Dos planos que sabemos que não cumpriremos, dos que de fato faremos, dos amores que vieram e deixaram feridas, dos que mudaram nossas vidas. Fraternidade e fé em forma de raio de sol a nutrir.
Me desperta o almoço aos domingos, com a conversa descompromissada ao pé aquecido do fogão à lenha. As reclamações da rotina que temperam a comida, os relatos da semana que perfumam o ambiente, as horas e horas que se passam no abraço do sofá, enquanto a mente dança entre as programações da TV na sala. Os risos, as piadas. A pipoca e a coca-cola que a tempera. Família que repreende, acolhe, reclama e incentiva em forma de raio de sol a nutrir.
Me desperta o companheirismo que permeia a rotina semanal, entre papéis, números, datas, prazos e carimbos. As risadas, as histórias, as receitas trocadas, as desilusões compartilhadas entre promessas infindas de recomeços, aliviando a pressão do tempo. Oito horas que voam sem o peso do salário, das cobranças, do dever a cumprir. Trabalho em forma de raio de sol a nutrir.
Me desperta a conversa de horas e horas em encontros esperados, planejados, marcados e remarcados. As lembranças que revivemos como se fosse ontem, as dores na barriga pelo riso que sai em lágrimas no rosto quando a alegria é tanta que não pode se expressar em silêncio. Os desabafos, as tristezas, os tropeços que se tornam mais leves por serem divididos e compreendidos. Amizade  e irmandade em forma de raio de sol a nutrir.
Me desperta a sua mensagem amorosa recebida pela manhã com o apelido que é só meu. A gentileza que abre a porta do carro, da casa, do coração, da vida. O olhar que me entende, me abraça, me beija. A família que você me presenteou e que também se fez minha. Me desperta o futuro sonhado e que se revela em seu cheiro, seu jeito, seu cafuné. A grandeza do que você me ensina a cada dia por ser quem é, a forma como me vê, a saudade que deixa a cada manhã de segunda-feira. Companheiro e parceiro de vida em forma de sol a nutrir.
         Já não sou a mesma, jamais serei. Conheci o sol e por ele fui desperta, refeita, renovada, apresentada à vida, ressignificada, temperada e colorida pela energia que dele advém. 
         Heliotrópica.
        Girando, seguindo, crescendo, florescendo e conhecendo o mundo pelos raios do amor.