MISERICÓRDIA
“Nos
movimentos do mundo
Cada um tem seu momento
Todos têm um pensamento
De vencer a solidão
E quem pensar um minuto
Saberá tudo dos ventos
E se tiver sentimento
Estenderá sua mão
Nos movimentos do mundo
Quem não teve um sofrimento
E não guardou na lembrança
Os restos de uma paixão
Coração recolha tudo
Essas coisas são do mundo
Só não guarde mais o medo
De viver a vida, não
Cada um tem seu momento
Todos têm um pensamento
De vencer a solidão
E quem pensar um minuto
Saberá tudo dos ventos
E se tiver sentimento
Estenderá sua mão
Nos movimentos do mundo
Quem não teve um sofrimento
E não guardou na lembrança
Os restos de uma paixão
Coração recolha tudo
Essas coisas são do mundo
Só não guarde mais o medo
De viver a vida, não
Nos
movimentos do mundo
Requerer perdas e danos
É abrigar desenganos
Sem amor e sem perdão
Nos horizontes do mundo
Não haverá movimento
Se o botão do sentimento
Requerer perdas e danos
É abrigar desenganos
Sem amor e sem perdão
Nos horizontes do mundo
Não haverá movimento
Se o botão do sentimento
Não
abrir no coração”
Nos Horizontes do Mundo – Paulinho d
Viola
Eu tinha oito
anos, pelo que me lembro. Oito anos, uma mochila mais pesada do que deveria,
cabelos amarrados em um penteado que me irritava por estar apertado demais,
tênis rosados, uniforme suado pelo recreio agitado e os olhos cheios de
lágrimas. Eu tinha oito anos e estava sentada no meio-fio tentando me lembrar
onde eu teria deixado o vale-transporte da passagem de ônibus de volta para
casa. Eu tinha oito anos e minha limitação infantil me via como perdida para
sempre em meio àqueles inúmeros desconhecidos e a possível ira da minha mãe por
ter perdido aquele vale-transporte... Chorava e
chorava... eu, minha mochila, meus tênis, meu penteado e meus oito anos. Eu
repetia a mim mesma: “para de chorar, daqui apouco alguém vai ver e vai vir te
fazer mal”.
Em meio àquela gente estranha e às lágrimas salgadas, um homem
coloca a mão no meu ombros e pergunta “o que foi, minha filha?”. Eu e meus
oitos anos medrosos e chorosos só lhe devolveram um olhar arredio e perdido,
mas a boca instintiva pediu ajuda: “não tenho como voltar para casa”. O homem
limpou meu rosto, colocou a mão no bolso e me deu um vale transporte. Ele ficou
do meu lado até meu ônibus chegar, não me perguntou qual ônibus eu pegaria, mas
esperou até que eu caminhasse para a porta de um deles. Eu entrei rápido
limpando o rosto. Ele me olhou pelas janelas e acenou com a cabeça. Eu não sei
seu nome, ele não me perguntou qual era o meu. Eu nunca lhe disse obrigada.
Eu tinha catorze
anos, pelo que me lembro. Catorze anos, muitas espinhas, um cabelo alisado,
fruto de minha inadequação íntima, um corpo que desenvolvia formas femininas
alheias ao meu querer e à minha conscientização da sexualidade pulsante do
mundo à minha volta e uma cabeça que ainda sonhava com artistas da TV, cantores
e seus passos orquestrados, papel de carta e jogos de verdade ou consequência.
Eu tinha catorze anos e estava em pé no ônibus lotado tentando me equilibrar
quando vi o homem que olhava para mim. Seus olhos me despiam. Desciam do rosto,
para o pescoço, para a cintura, para as pernas. Ele não parava de me olhar. Eu, então, tive muito medo e, em minha mente, articulava o que poderia fazer. Desceria
em uma rua escura, caminharia para casa sozinha, não tinha como avisar a alguém
que me esperasse na esquina. O homem olhava para mim. Meus olhos se encheram
d’água e eu repetia a mim mesma: “não chora, ele vai saber que você está com
medo”. O homem olhava para mim. O ônibus se esvaziava e, então, eu me sentei
nos bancos ao fundo, mas o homem virava para trás e me olhava, virava pra trás
e me despia, virava pra trás e me enchia de medo. Meu ponto passou e, quando vi
um comércio semiaberto em um ponto distante do meu, saltei do ônibus
rapidamente e entrei na sorveteria que já se fechava dizendo baixo ao senhor
que estava cerrando a porta: “espera, moço, me ajuda!”.
O homem
desceu atrás de mim, mas ficou em pé do outro lado da rua. O senhor com o cenho
entalhado de rugas, cansado pelo dia e pela vida, viu meu olhar de súplica, viu
o homem que me olhava e, com a sabedoria que a idade traz, me abraçou dizendo alto “que bom que você chegou minha filha, já estava preocupado!”. Eu lhe devolvi o abraço enquanto ele dizia em meu ouvido: “calma, eu te levo em casa”.
Ele terminou de fechar sua sorveteria. O homem continuava me olhando do outro lado da rua. O
Senhor me deu a mão e disse: “vamos?”. Eu o guiei pela rua escura e fomos para
minha casa. Andamos por quinze minutos de mãos dadas. O senhor não me perguntou nada, apenas
dizia, “calma, ele não está vindo atrás de nós, calma minha filha”. O senhor me
acompanhou até a porta de casa. O senhor esperou que meu pai abrisse o portão e lhe
contou o ocorrido. O senhor me viu entrar chorando pela sala e, ao longe, acenou com
a cabeça pra mim. Eu não sei seu nome, ele não me perguntou qual era o meu. Eu
nunca lhe disse obrigada.
Eu tinha
vinte anos, pelo que me lembro. Vinte anos, cabelos cacheados, um vestido que
dançava no ritmo da música, amigos, minha baixa auto estima e a insegurança que
me faziam temer ficar só. Eu tinha vinte anos estava dançando embalada pela
música esquecida dos abusos que sofria em meu relacionamento quando ele puxou
meu braço e disse ao meu ouvido: “para de se comportar como uma puta!”. Eu senti muita raiva, muita tristeza,
muita vergonha, muita inadequação. Tentei ensaiar passos mais contidos para que
não percebessem a tragédia que era encenada em minha mente e que queria se
esvair pelos meus olhos em pranto incontido. Eu repetia a mim mesma: “não
chora, ele vai brigar mais ainda com você”. Mas minha dor foi mais
forte e as lágrimas teimosas caíram dançando pelo meu rosto quente. Mas eu dançava, virava o rosto, respirava fundo, dançava,
a música vai me tirar daqui, a música vai me fazer esquecer...
Em meio
àqueles jovens que dançavam uma mulher olhou pra mim. Ela veio caminhando em
minha direção e me abraçou. Ao meu ouvido ela me disse: “não sei o que ele te
falou, minha amiga, mas não é verdade, tá? Você é linda e dança
muito bem”. Ela me deu um beijo no rosto molhado e salgado pelo choro e se
afastou de mim. Eu a busquei com o olhar e, ao longe, ela acenou com a cabeça pra
mim. Eu não sei seu nome, ela não me perguntou qual era o meu. Eu nunca lhe
disse obrigada.
Eu tinha
vinte e oito anos, pelo que me recordo. Eu tinha vinte e oito anos, um par de
tênis ainda rosados, as pernas cansadas em passadas apressadas na orla da
lagoa, o rosto suado e a respiração ofegante. Eu tinha vinte e oito anos e
tinha superestimado a minha capacidade de corrida e, solitária, agonizava no
caminho de volta, sem que meu orgulho permitisse que eu reduzisse a passada. Eu
repetia a mim mesma: “não para, todos vão te achar fraca e está quase chegando”.
Foi então que senti dois braços a meu lado. Um casal de corredores parara a meu
lado, me dando os braços, cada um de um lado. A moça sorria e me estendia um
copo com água, enquanto o moço, com seus óculos de corredor, dizia entre sorrisos
e respiração ofegante: “vamos lá, a gente consegue ir até o museu de arte!”.
Eles permaneceram do meu lado, me incentivando e praticamente me carregando
nessa reta final que nunca chegava. Não pretendia ir até o museu, mas não lhes
disse isso, apenas corri e aceitei a água oferecida. Corremos entre frases de apoio,
suor, céu limpo e passadas apressadas. No museu, os dois seguiram sua corrida
ritmada e coordenada. Eu os acompanhei com o olhar e eles me acenaram com a
cabeça. Eu não sei seus nomes, eles não me perguntaram qual era o meu. Eu nunca
lhes disse obrigada.
Hoje, ao que
me recordo, eu ainda tenho meus vinte oito anos. Tenho vinte e oito anos e vejo
pessoas morrerem de frio na rua. Eu tenho vinte e oito anos e joguei uma
vasilha de leite vencido em minha geladeira no lixo, faço dieta para emagrecer
meu egoísmo acumulado em gordura, enquanto muitos morrem de fome no mesmo
planeta que eu. Tenho vinte e oito anos e dou descarga, lavo a varanda e as
janelas de minha casa com água potável, floreteada e clorificada, no mesmo
planeta em que se mata e se morre por sede.
Moço que me
deu o vale-transporte, senhor que me acudiu naquela noite em meus catorze anos,
moça bonita que me entendeu e me consolou naquela festa, casal de corredores
que me acudiu quando eu não tinha fôlego nem para pedir ajuda, eu nunca lhes disse
obrigada. E nem vou lhes dizer agora. Quero pedir que me desculpem. Perdoem-me,
pois a misericórdia que tiveram comigo ainda não me comoveu como deveria. As
dores dos outros ainda não doem em mim, como sei que as minhas pequenas mazelas
tocaram vocês naqueles dias que, pra mim, foram tão frios, famintos e sedentos
como desses meus semelhantes em suas grandes mazelas. Perdoem essa minha
indiferença para miséria cotidiana que nem me incomoda mais e por eu ainda
encontrar motivos em minha riqueza para reclamar da vida que julgo merecer. Desculpem-me
por fazer tão pouco, por não enxergar quem sofre a meu lado, por não viver a
miséria do coração alheio, como vocês viveram a miséria que habitava em mim.