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terça-feira, 23 de agosto de 2016

Calçada

“You've got to learn to hide your sorrow and go on living as before
But good is thinking of tomorrow
Who knows what it may have been stored?
You've got to learn to be much stronger the times your head must rule your heart
You've got to learn from hard experience and lead some to advice
And sometimes bear the price and learn to live with a broken hear”[1]Nina Simone

                Tem uma mulher deitada na calçada.
                Tem uma mulher deitada, morta na calçada.
                Tem uma mulher, mãe, irmã, tia, filha, amiga, servidora, deitada, morta na calçada.
                Os homens passaram de moto e deixaram a mulher ali: morta, deitada da na calçada.
                Os homens deixaram a mulher ali na calçada, mas e o destino que eles criaram, quem vai levar? Os filhos que viraram órfãos, a irmã que perdeu a companheira, a mãe que perdeu o sentido, a amiga que não tem para quem ligar, esses destinos, quem vai levar?
                O que eu digo aos meninos que esperam a mãe de volta? O que eu digo a eles? E eu digo de quem suspeitam? E se eu não disser, será que diminui a dor? Será que muda a realidade da dor? Será que eles não vão unir os telefonemas agressivos, o choro sufocado da mãe, a mudança repentina para casa da avó, como a trilha que leva ao culpado? O que eles vão contar na escola aos colegas? O que vão contar aos filhos deles sobre a história da avó que eles não poderão conhecer?
                O que eu digo à irmã que a recebeu em casa? O que eu digo a ela? Ela sabia do que acontecia e recebeu a mulher em casa, abriu as portas e a vida para que ela tivesse abrigo à violência que deveria estar porta a fora, mas isso não adiantou, e agora? A quem ela deve recorrer? À lei que leva por nome uma mulher mártir deficiente pela deficiência do Estado que acha que pode resolver tudo? Um Estado que só olhou para a mártir e agora só olha para a mulher da calçada por que o sangue e a revolta se tornaram visíveis? A quem ela deve procurar? A quem recorrer? Quem vai consolar?
                O que eu digo à sua mãe que já passou por uma vida de abusos, como todas passaram, e agora tem que encarar a realidade do que é tapado com peneira na figura da filha deitada na calçada? Eu digo que os tempos mudaram? Que progredimos? Que machismo “dá cadeia”? Que a mulher tem mais direitos? Que tem o dia dela? Você teria coragem de dizer isso diante da evidente ineficiência de qualquer prédica, já que a prática cotidiana ainda é assassinar quem não quer seguir mais como você dita? Que “ta certo” dizer que aquela que chora é criança, é infantil, é louca? Que a outra anda com roupa curta é puta, não tem postura de mulher e está pedindo? Diante da rotina que cega os homens dos serviços domésticos por que foram criados assim e tudo bem, isso não é nada, “amanhã é minha vez, querida”? Mas quando vai chegar o amanhã com sua vez de ser julgado, com a sua vez de ser abusado, com a sua vez de ser assassinado?
A mulher está lá na calçada. Ela era mãe, era irmã, era tia, era amiga, mas ela agora é estatística. A estatística se perde no tempo, no esquecimento, nos números, nos prazos, nas prescrições, nas “data vênias”, nos processos, nos “excelentíssimos”, “meretíssimos”, nos carimbos, na frieza do mundo.
Mas nada disso apaga a dor.
Nada disso consola.
Nada disso socorre.
Nada disso resolve.
A mulher ainda está na calçada.
Nada que eu escreva ou diga vai mudar isso, vai diminuir em uma lágrima essa dor.
Mas eu quero que ela saiba que ela não está sozinha na calçada: estamos todas nós.
Silenciaram a mulher, mas a mim ainda não silenciaram e enquanto assim for eu digo, eu choro, eu grito e enlouqueço: NÃO PASSARÃO!


[1] Você tem de aprender a esconder sua tristeza e continuar vivendo como antes/Mas é bom pensar no amanhã/Quem sabe o que pode ter sido guardado?/Você tem de aprender a ser muito mais forte nos tempos em que sua cabeça deve governar o seu coração/Você tem de aprender com as experiências difíceis e levar algumas para conselhos/E às vezes suportar o preço e aprender a viver com o coração partido

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